NOTA DO MOVIMENTO ZOADA:
Estádio de pé, casa no chão. Um grito de gol não vai apagar nossa história.
No Dia Internacional de Lutas Contra a Copa, ou 15M, como ficou conhecida a data de 15 de maio, milhares de pessoas no país se mobilizaram e foram às ruas gritar contra as injustiças a que temos assistido, especialmente desde o ano passado, em prol da realização desse megaevento, a Copa do Mundo de 2014. Aqui em Pernambuco, inspiradas/os pelo Encontro Nacional das/os Atingidas/os por Megaeventos ocorrido em Belo Horizonte, no início de maio, antigas/os e atuais moradoras/es das comunidades atingidas, estudantes, integrantes de movimentos sociais e de sindicatos foram às ruas contra violações da Copa e outros processos neodesenvolvimentistas que vêm sedimentando a construção de um projeto de cidade cada vez mais excludente e privatista. O ato foi finalizado no Terminal Integrado de Camaragibe, ao lado do terreno do qual cerca de 200 famílias foram removidas com a finalidade de se realizar obras (não concretizadas até agora) para ampliação do TI e Ramal da Copa, no Loteamento São Francisco. Houve também uma homenagem às/aos desapropriadas/os que faleceram na esperança de receber as indenizações a que tinham direito, numa situação extrema de estresse e sofrimento que levou pelo menos sete delas/es ao falecimento. Essas famílias se somaram a diversos grupos estudantis, políticos e de usuários de transporte para exigir o pagamento das indenizações, auxílio moradia e a construção de um conjunto habitacional no local onde elas foram desapropriadas para abrigar aquelas/es que não mais possuem casa própria. São mais de 2.000 famílias que foram obrigadas a deixarem seus lares, apenas em Pernambuco – além de Camaragibe, também foi afetado São Lourenço da Mata, Santa Mônica e Cosme e Damião. As tentativas de diálogo com o poder público estadual por parte do Comitê Popular da Copa foram inúmeras, porém o governo Eduardo Campos e João Lyra Neto restaram inalcançáveis; precisamos denunciar incisivamente tal descaso com um assunto tão grave. O Governo de Pernambuco também não assumiu que as obras no Coque, realizadas para o acesso ao Terminal de Passageiros do Joana Bezerra, são ligadas à Copa, embora seja de conhecimento do Coque (R)Existe bem como da Procuradoria Geral do Estado que essa ampliação do acesso viário ao TI Joana Bezerra constitui mais uma obra para o acesso à Arena Pernambuco. A Prefeitura do Recife, por sua vez, realizou o maior número de desapropriações, embora responsável por uma única obra, a Via Mangue – enquanto a grande maioria foi transferida para os residenciais Via Mangue 1, 2 e 3, uma minoria recebeu indenização.
É importante demarcar que esse debate pouco se concentra em falar sobre jogos de futebol; problematizar a forma e o conteúdo das medidas que vem contextualizando a Copa implica necessariamente em falar de vários setores da sociedade em que vivemos, para além do futebol. “Da copa eu abro mão”, palavra de ordem tão utilizada nos últimos atos, não se resume a ser contra o futebol; pelo contrário, não somos contra o futebol enquanto esporte. É inegável que esse é um elemento cultural muito latente no Brasil, e marcante em nossa identidade cultural, reconhecemos que do futebol emana força e arte. No entanto, não podemos nos furtar da problematização do futebol no âmbito de sua apropriação pelo sistema capitalista. Esse esporte, assim como várias outras manifestações culturais, se tornou mais uma mercadoria, mais um objeto de obtenção de lucro em detrimento de direitos e lutas sociais. É pra essa lógica que está voltada a Copa de 2014, repleta de contradições que podem e devem ser pautadas por todas/os nós, nas ruas, a fim de incentivar as mobilizações políticas.
Percebemos que politizar o debate acerca do futebol não é algo tão recente quando lembramos de sua participação em lutas sociais históricas. A famosa Democracia Corinthiana, nos anos 80, se revelou como um movimento que questionava abertamente a ditadura, seus membros estavam presentes, por exemplo, na campanha pelas Diretas-Já e nos comitês de solidariedade à revolução da Nicarágua. Mas o que aconteceu com o futebol que nos remetia ao “popular”, ao “público”? As novas tendências de “futebol moderno” tem desprezado tradições do futebol que não se enquadrem no padrão higienista e elitizado que se busca. Alguns fatores que demonstram esse incômodo por parte dos setores que querem garantir sua manutenção de status são a criminalização das torcidas organizadas, aumento dos preços dos ingressos, privatização dos estádios, além de outros elementos fundamentais para definir qual público deseja-se receber, como transporte, horário de realização das partidas e localização dos estádios. É evidente que o futebol virou um negócio bastante lucrativo, e nesse aspecto, é mais importante para os empresários que lucram com essa atividade ter as cotas de patrocínio de TV, por exemplo, do que ter a presença das classes mais baixas nos estádios. Há um debate de luta de classes, dessa forma, visto que apreciar o esporte ou ser fanático pelo seu time definitivamente não é o critério mais levado em consideração. Assim, entendemos como legítima e necessária a ocupação do espaço que ainda não foi privatizando e que continua disponível para se torcer democraticamente, as ruas.
Compreendemos que em um país em que há tanta miséria e desigualdade social, o dispêndio de grandes quantias em obras que servem a um megaevento é visto com intolerância por muitas/os. Mas para além do fator dos gastos financeiros, a Copa revela outros elementos mais perversos. Em consonância com a lógica mercadológica da FIFA, a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/12) surge para derrubar princípios constitucionais e de direitos humanos conquistados com tanta dificuldade, simplesmente para proteger as empresas patrocinadoras da FIFA do chamado “marketing de emboscada” e para impedir que haja qualquer “óbice” à visibilidade dos jogos, ou seja, punir qualquer tentativa de manifestação. São atentados à dignidade humana e moléstias aos setores que já são, corriqueiramente, os mais afrontados; essas ofensivas têm se dado numa atividade conjunta entre Congresso, Governos, Judiciário, FIFA e a mídia corporativa. As exigências da FIFA na Lei da Copa são esdrúxulas e ofensivas em todos os momentos em que pretende efetivar a elitização à qual já nos referimos. Além dessa lei, ganhamos “de brinde” um outro atentado a nossos direitos, o Projeto Lei 728/2011, já aprovado pelo governo, que prevê a punição ao crime de “terrorismo” – não tipificado no Código Penal brasileiro. O projeto estabelece penas de no mínimo 15 e no máximo 30 anos, e pra piorar traz um conceito de terrorismo (“O ato de provocar terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo”) que dá margem para que qualquer manifestação ou protestos, coletivo ou individual, possa ser qualificado como terrorismo e formação de quadrilha. Enquanto completamos 50 anos do golpe militar, somos submetidos a encarar uma “lei antiterror” que relembra a ditadura e que prepara uma força-tarefa para cercear nossos direitos de manifestação. Mas se o Poder Executivo e Legislativo acreditam que, juntos com a FIFA, conseguirão nos chutar pra fora dos estádios e que ficaremos de braços cruzados lamentando estão muito enganados.
Destacamos ainda outra medida absurda contida no PL 728/2011, que prevê uma restrição do direito à greve nos serviços considerados “essenciais” à população durante a Copa, como a manutenção de portos e aeroportos, serviços de hotelaria e vigilância. O projeto estabelece também que os sindicatos devem avisar com 15 dias de antecedência sobre qualquer paralisação, além de obrigar ao menos 70% das/os trabalhadoras/es a permanecer em atividade. Como se não fosse suficiente, o governo estará autorizado a contratar trabalhadores substitutos para que seja mantido o atendimento. Ou seja, tudo isto representa interdições ao direito de greve – um direito conquistado graças a um histórico de lutas das/os trabalhadoras/es, na época inseridas num contexto de ditadura feroz.
Pra se ter uma ideia de como esse autoritarismo nos remete a um Estado de exceção, a maioria dessas leis já foram aplicadas na última Copa do Mundo da África do Sul, e para que sua implementação fosse efetuada, criaram-se “tribunais especiais”, ou seja, uma Justiça de Exceção para “julgar” as infrações contra a Lei da Copa. A criação desses “juizados especiais”, previstos pelo art. 37 do projeto, dá margem a arbitrariedades como as que ocorreram em 2010 na África do Sul, quando por exemplo um desses “juizados” condenou (em menos de 24 horas) dois africanos do Zimbábue, acusados de roubar jornalistas, a 15 anos de prisão.
A intimidação da Força Nacional e do GATT se fizeram presentes no 15M em Pernambuco, dado o contexto específico ocasionado pela greve da PM. Em outras cidades, a Tropa de Choque da Polícia Militar mostrou sua atuação com violência nos protestos, usando bombas de gás lacrimogêneo e tiros de bala de borracha e deixando vários feridos. A PM é o braço do Estado responsável pela repressão direta e física da população. Reconhecemos que as reivindicações dessa categoria de trabalhadoras/es por melhorias nas condições de trabalho (extremamente precárias atualmente) são legitimas, mas evidenciamos a necessidade de sua desmilitarização, o que restou claro nos últimos dias em que na cidade se instaurou um pânico desmedido pelo sentimento de abandono que a sociedade demonstrou sentir com a falta da Polícia Militar, como se esta fornecesse proteção (contra nós mesmos) e não violência.
Diante de tudo isso, enquanto alguns milionários detêm o controle dos estádios privatizados, as/os trabalhadoras/es que de fato são as/os responsáveis por erguer essas obras, ficam com o lado mais trágico do cenário – só até dezembro de 2013 já haviam sido registradas sete mortes nessas obras, que se iniciaram em 2012. Nem serão essas/es brasileiras/os mais humildes, ainda que amantes do futebol, as/os que vão desfrutar dos megaestádios, poucos ou nenhum dos assentos “padrão FIFA” serão reservados a elas/eles. Não é coincidência que, nos últimos anos, as greves das/os trabalhadoras/es da construção civil que constroem os palcos da Copa tenham sido tantas, motivadas por queixas na péssima qualidade de alimentação ou mesmo pelas condições de trabalho que só fazem piorar a cada dia em que o prazo para entrega de um estádio se aproxima. O Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil do Amazonas, por exemplo, denuncia que há operários trabalhando em turnos de até 18 horas por dia.
A “Justiça” também tem se mostrado conivente às violações, criminalizando e condenando os movimentos sociais por “crimes de dano ao patrimônio público” ou por “desobediência”. Além disso, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADIN 4976 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), na qual a Procuradoria Geral da República questionou dispositivos da Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012). Um dos dispositivos questionados foi aquele que isenta a FIFA e suas subsidiárias do pagamento de custas e outras despesas judiciais.
Como se não bastassem os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário realizarem todas as arbitrariedades aqui relatadas (dentre várias outras), em conivência com os interesses econômicos da FIFA, a mídia corporativa, a mesma que tentou pautar as mobilizações sociais do ano passado, também cumpre seu papel de manipulação. Quando não se exime de denunciar os abusos, subverte os movimentos sociais e coloca a sociedade contra estes. Não por acaso, nos últimos dias os noticiários se preocuparam muito mais em alimentar o pânico dos/as que sentiram falta da PM nas ruas do que em falar dos moradores de Camaragibe – que sequer foram lembradas/os nos meios de comunicação tradicionais. A imprensa simplesmente se eximiu de reportar o drama das milhares de famílias vitimadas, ou até de denunciar que as “soluções” de transporte utilizadas como pretexto para as obras são meros paliativos para garantir o acesso dos/as torcedores/as aos novos estádios. Nada mais previsível quando se sabe que praticamente a totalidade dos veículos de mídia são concentrados nas mãos de poucas figuras da iniciativa privada. Nesse contexto, é importante frisar como a democratização da mídia se mostra essencial para construir uma imprensa que tem preocupações para além dos lucros advindos da publicidade veiculada na cobertura do evento. Não podemos nos esquecer que estamos em ano de eleições, época em que o resguardo da imagem de gestões e políticos, aos quais se alia o empresariado, prejudica bastante qualquer visibilidade para as/os atingidas/os diretamente pelas obras da Copa. Já assistimos, na Copa de 1970, a utilização do futebol como meio propagandístico: diante da conquista do mundial pela seleção, a ditadura militar, sob o comando do general Médici, soube reverter a euforia que vivia a população para seu próprio fortalecimento, e revestimento da censura, das torturas e mortes de seus opositores. Eram comuns os clichês “Ninguém segura esse país” ou o intimidador “Brasil, ame ou deixe-o”. Em 2014, mais uma vez alguns setores tentam usar o futebol como meio propagandístico para reafirmar a ideia de um Brasil potência, porém esta não nos parece uma saída por aquelas/es que acreditam em um projeto de transformação de sociedade coletivo.
Ano de Copa geralmente vem acompanhado por um falso patriotismo, amparado no sentimento da torcida pelo time brasileiro e em uma bandeira que ostenta as palavras “ordem e progresso”, oriunda de uma mentalidade positivista de militares e aristocratas em fins do século XIX. Não nos interessa uma “ordem” voltada unicamente para o bom andamento dos jogos, enquanto a pobreza como (des)ordem permanece normalmente fora dos muros dos estádios. Iremos questionar continuamente que “ordem” é essa, a quem serve esse “desenvolvimento”, e quem são as/os defendidas/os por essas instituições “democráticas”. Não permitiremos que falsas “festas” e “comemorações” tenham voz mais forte que a voz das/os excluídas/os cotidianamente pela desordem que não cessará durante nem depois da Copa; a desordem das UPPs, do transporte público, do SUS, das/os que ganham salários irrisórios. Sabemos que essa é a verdadeira desordem, que não se interrompe com nenhuma Copa do Mundo.
Na semana passada, visualizamos no dia 15 de maio várias manifestações, fechamento de estradas e greves, numa salutar unidade entre estudantes e trabalhadoras/es, que pleiteiam várias pautas em comum, como moradia, transporte, educação e saúde. Assim aconteceu em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, com as/os metroviárias/os, metalúrgicas/os, professoras/es e rodoviárias/os. A abertura da Copa do Mundo, assim como todo o calendário de jogos, será perpetrada por manifestações populares, em diversas cidades do país. O dia 12 de junho foi escolhido como a data de início da Jornada de Mobilizações “Na Copa vai ter Luta”.
Queremos saudar os Comitês que vem intensificando a luta contra a criminalização dos movimentos sociais e da pobreza nesse ano de Copa, reconhecendo que esses coletivos vêm encampando e mobilizando as pautas contra os desmandos da Copa.
Enxergamos como importante a defesa do protagonismo das/dos que sofrem cotidianamente com o tolhimento de direitos, bem como a continuidade e constância dessas mobilizações, não apenas até o fim dos jogos mas também para depois da Copa.
Não vamos às ruas contra o futebol ou a Copa do Mundo em abstrato, mas sim contra os problemas concretos que se apresentam e que mostram a tônica antipopular da Copa do Mundo. Queremos fortalecer os movimentos que, assim como nós, não aceitam as remoções forçadas, nem a truculência da repressão do Estado. Para nós do Movimento Zoada, lugar de luta é nas ruas, e nesse ano não poderia ser diferente! Na Copa vai ter luta!